Quando escrevi, originalmente, este texto, estava em oração pelo povo da Síria, especialmente os da cidade de Alepo, onde cerca de 50 mil civis estavam encurralados, esperando ajuda para saírem das áreas de conflito entre o Estado Islâmico e as forças que defendiam o governo. Hoje, em 2019, oramos pelo povo da Venezuela, que enfrenta grande crise política e econômica, a ponto de provocar a emigração de milhões de cidadãos.
No texto deste parágrafo de Atos, a igreja estava passando por um momento assim angustiante porque, depois do apedrejamento de Estêvão, levantou-se grande perseguição. Uma grande tribulação, um período de intensa provação, para o povo escolhido. Deus permitiu que sobreviessem tribulações, porque é um dos instrumentos que levam à obediência e ao cumprimento dos seus propósitos. Quando somos provados por meio da tribulação, reagimos de diversas formas, conforme o nosso coração nos guia, no momento. Entre as diversas formas possíveis de reação á tribulação, podemos citar pelo menos três.
Reagindo conforme o instinto (1)
E Saulo consentia na sua morte. Naquele dia, levantou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém; e todos, exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da Judéia e Samaria.
Uma das formas de reação muito comum, diante de tribulações, é agir conforme o nosso instinto. Aqui, no caso, o instinto de sobrevivência. A perseguição levou a comunidade, menos os apóstolos, a se dispersarem, a fugirem pelas regiões da Judeia e Samaria. Fugiram para evitar a perseguição e morte, num instinto de sobrevivência.
A reação por instinto é a mais comum, pois ocorre naturalmente, sem planejamento. Aliás, o instinto é tão forte que nos leva a agir até mesmo contra o nosso planejamento. Planejamos falar a verdade, mas na hora falta a coragem. Planejamos ficar calmos, mas uma palavra ou um gesto de alguém nos faz “perder as estribeiras”.
Achamos que Deus permitiu essa grande perseguição justamente para que o povo, se dispersando, levasse junto a mensagem do evangelho, e assim a reação conforme o instinto fez com que o propósito de Deus fosse cumprido. Deus nos criou assim, e nos deu instintos para nos proteger e para cumprimento de alguns dos seus propósitos.
O professor Márcio Amaral, da UFRJ e UFF, em um artigo sobre psicologia, escreve o seguinte:
"Se o laço dos instintos, esse laço protetor, não fosse tão mais poderoso do que a consciência; se não desempenhasse, no conjunto, um papel de regulador, a humanidade sucumbiria fatalmente sob o peso de seus juízos absurdos...de suas frivolidades, sua credulidade, isto é, seu consciente" (Nietzsche: "A Gaia Ciência" ou "O Alegre Saber", aforismo 11) Quem duvidar dessas palavras, precisa saber, ou se lembrar, de que os médicos já contraindicaram, por exemplo, a amamentação. Assim surgiram as amas de leite e as amas-secas. É possível imaginar uma violência maior, e mais simbólica, contra os instintos?
AMARAL, Márcio. Os instintos: contrapondo Nietzsche a Freud-I. Disponível em: http://www.ipub.ufrj.br/portal/ensino-e-pesquisa/ensino/residencia-medica/blog/item/171-os-instintos-contrapondo-nietzsche-a-freud-i Acesso em: 09/12/2016)
Mas não é correto pensar que devemos reagir sempre às provações da vida conforme os nossos instintos. O instinto é apenas a primeira e mais natural reação, mas para que possamos ficar dentro da vontade de Deus, precisamos aprender a controlar nosso ímpeto para, com calma, ver o que realmente Deus requer de nós. Pode ser que ele queira de nós outra forma de reação.
Agindo conforme a piedade (2)
Alguns homens piedosos sepultaram Estêvão e fizeram grande pranto sobre ele.
A piedade, que é semelhante à religiosidade, leva as pessoas a fazerem o que é correto segundo o seu entendimento. Homens piedosos sepultaram Estêvão e fizeram grande pranto sobre ele. Estes homens piedosos possivelmente estavam no sinédrio que o julgava, mas não tiveram forças para impedir seu apedrejamento. O que lhes restou foi dar ao jovem pelo menos um enterro digno.
Nós agimos, muitas vezes, de acordo com a piedade. Fazemos muitas coisas motivados pela religiosidade, conforme nosso entendimento do que é a vontade de Deus. Mas nem sempre piedade ou religiosidade, da maneira como as praticamos, representa de fato a vontade de Deus. Tiago contestou a religiosidade de alguns, alertando que poderiam estar praticando uma religião vã, conforme Tiago 1.26,27: “Se alguém supõe ser religioso, deixando de refrear a língua, antes, enganando o próprio coração, a sua religião é vã. A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo”. Em 1ª Timóteo 6.5 é a vez de Paulo criticar as “altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro”.
As instituições conhecidas como “Santas Casas de Misericórdias” foram criadas para ajudar os necessitados. No site da Santa Casa da Bahia encontramos as seguintes informações:
O Compromisso da Misericórdia de Lisboa é um conjunto de quatorze obras de misericórdia, baseadas nos ensinamentos de São Tomás de Aquino. Sete delas são espirituais: ensinar os simples, dar bons conselhos, castigar os que erram, consolar os tristes, perdoar as ofensas, sofrer com paciência, orar pelos vivos e pelos mortos. As outras sete são corporais: visitar os enfermos e os presos, remir os cativos, vestir os nus, dar de comer aos famintos e de beber aos sedentos, abrigar os viajantes e enterrar os mortos. Inspirada e orientada por estes conceitos, as Santas Casas de Misericórdia foram fundadas a partir de 1498, sendo a primeira em Lisboa (Portugal), em um período da história lembrado por tragédias, guerras e pelas grandes navegações. Nesse cenário, o surgimento das Santas Casas ficou marcado pela retomada de sentimentos como a fraternidade e a solidariedade. Prova disso é que, muitas vezes, a Irmandade não precisou de uma instituição física: ela foi ao encontro dos enfermos e inválidos, onde quer que eles estivessem. Assim, chegou à Ásia, África, se espalhou pela Europa e, claro, pelas Américas. No Brasil, a Santa Casa chegou durante o período colonial e as suas unidades foram instaladas em diversos locais do país. A primeira foi em Santos, São Paulo; a segunda, em Olinda, Pernambuco; e a terceira em Salvador, Bahia, no ano de 1549.
A história das Santas Casas de Misericórdia e seus ideais de caridade e filantropia. Disponível em: http://www.santacasaba.org.br/historia Acesso em: 10 dez. 2016.
Hoje em dia, porém, as Santas Casas não trabalham somente por caridade, já que o governo é quem paga os tratamentos dos pobres. Além disso, as Santas Casas oferecem, à parte, serviços diferenciados para quem puder pagar por maior urgência e conforto.
Quando decidimos que vamos servir a Deus e de fato nos esforçamos para andar nos seus caminhos, as pessoas notam e comentam que somos pessoas religiosas. Mas se queremos, de fato, agradar a Deus, precisamos submeter nossa religiosidade e nossa piedade ao teste de pureza dos verdadeiros desígnios do Senhor.
Reagindo conforme as convicções (3)
Saulo, porém, assolava a igreja, entrando pelas casas; e, arrastando homens e mulheres, encerrava-os no cárcere.
Saulo tinha convicção de que estava fazendo o que era correto, senão, não o faria. Ele era sincero, mas sinceramente errado em suas convicções. Ele dá o seu testemunho sobre estes fatos em Atos 26.9-11:
Na verdade, a mim me parecia que muitas coisas devia eu praticar contra o nome de Jesus, o Nazareno; e assim procedi em Jerusalém. Havendo eu recebido autorização dos principais sacerdotes, encerrei muitos dos santos nas prisões; e contra estes dava o meu voto, quando os matavam. Muitas vezes, os castiguei por todas as sinagogas, obrigando-os até a blasfemar. E, demasiadamente enfurecido contra eles, mesmo por cidades estranhas os perseguia.
Fidel Castro, o ex-presidente cubano, que morreu em novembro de 2016, é odiado por alguns e idolatrado por outros. Ele tem a seu favor o mérito de ter tirado do poder um ditador, Fulgêncio Batista, em 1959, e de ter proporcionado, em seu governo, consideráveis melhorias sociais, principalmente nos campos da saúde e da educação. Porém tornou-se, ele mesmo, um ditador que ficou 49 anos no poder. O jornalista Duda Teixeira, da revista veja, comenta que:
Ao longo dessas quase seis décadas, o rebelde pertinaz inseriu Cuba no mapa do mundo, despertou sonhos planetários de igualdade e justiça, incendiou a imaginação de toda uma geração de esquerda, mas acabou criando sua própria ditadura e converteu-se em um tirano turrão, que insistia em condenar seu povo a viver sob um modelo econômico e político abandonado pela maior parte da humanidade há 25 anos [...].
TEIXEIRA, Duda. Fidel Castro e seu tempo. Revista Veja, 3 dez 2016. Disponível em: http://veja.abril.com.br/mundo/fidel-castro-e-seu-tempo/ Acesso em 10 dez. 2016.
A escritora Marta Harnecker, no prefácio de seu livro sobre Fidel, anuncia que “[...] aqui, pode descobrir como um grupo de jovens movidos por grandes ideais e decididos a lutar por seu povo, podem ser protagonistas da história”.
HARNECKER, Marta. Fidel: A estratégia política da vitória. Tradução Ana Corbisier. São Paulo: Expressão Popular, 2000, P. 23. Disponível em: http://www.consultapopular.org.br/sites/default/files/fidel.pdf Acesso em 10 dez. 2016.
Um desses jovens de grandes ideais, imprescindível para a vitória da revolução de Fidel, foi o médico Ernesto Che Guevara.
Eduardo Szklarz, num artigo sobre Che, diz que:
O que fascinava mesmo o rapaz eram os livros e as viagens. (...) E gostava de enfiar o pé na estrada: antes de terminar a faculdade, acoplou um motor numa bicicleta e rodou pelo seu país. Assim Ernesto cresceu na Argentina como um cara qualquer. Che ainda estava adormecido lá dentro. E só começaria a acordar quando ele saiu de moto pela América do Sul com o amigo Alberto Granado.
SZKLARZ, Eduardo. A verdade sobre Che. Super Interessante, 15 jan. 2011. Disponível em: http://super.abril.com.br/historia/a-verdade-sobre-che/ Acesso em 10 dez. 2016.
É irônico, mas o jovem médico que gostava de viajar, de ser livre, que formou uma firme convicção e entregou sua vida por ela, talvez não imaginasse como seus futuros colegas, médicos cubanos, lamentariam hoje justamente sua falta da liberdade. Uma reportagem da jornalista Cláudia Collucci, da Folha de São Paulo, em 2015, revela as dificuldades pelas quais passavam os médicos cubanos em serviço no Brasil:
As regras para viagens de cubanos ao exterior foram flexibilizadas pelo governo da ilha desde janeiro de 2013, não sendo mais preciso autorização prévia. Elas mantiveram em aberto, no entanto, a possibilidade de vetar pesquisadores, médicos, atletas e opositores ao regime. A presença de cônjuges e filhos no Brasil, na prática, facilita a fixação desses médicos cubanos no país, agravando os riscos de fuga de uma mão de obra qualificada, que gera dinheiro para a ilha. No sábado (7), a vice-ministra da saúde de Cuba esteve no município de Jandira (SP). Entre 13h E 16h conversou com médicos e disse que há 530 profissionais na ilha à espera de vaga no programa. “O recado foi claro. Se os familiares não voltarem, seremos substituídos”, diz um médico que pede anonimato. Há casos em que marido e mulher são do programa e têm filhos pequenos. “Temos dois casais de amigos que têm filhos de três e seis anos e que estão sendo pressionados para mandar as crianças de volta, sozinhas”, relata outro. “Querem que meu marido volte. Ele está há quatro meses empregado, com carteira assinada. Não é justo”, afirma uma médica cubana que atua na Grande SP. Outra teme se separar do marido e do filho de sete anos – já matriculado numa escola. “Se eles forem obrigados a voltar, irei junto.”
COLLUCCI, Cláudia. Cuba pressiona profissionais do Mais Médicos por volta de parentes à ilha. Folha de São Paulo/Cotidiano, 13/03/2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/03/1602220-cuba-pressiona-profissionais-do-mais-medicos-por-volta-de-parentes-a-ilha.shtml Acesso em 10 dez. 2016.
Talita Bedinelli e Flávia Marreiro, colaboradoras do jornal El país, em julho de 2016, reproduziram depoimentos de médicos cubanos que cogitavam até mesmo desertar do seu país:
A insatisfação é total. Estou cansada de que decidam minha vida sem a minha opinião", queixa-se H. K., uma das médicas cubanas frustradas pela decisão do Governo de seu país de não prorrogar a permanência dos profissionais que estão no Brasil pelo Mais Médicos desde o início do programa, há três anos. Havana oficializou, por meio dos coordenadores regionais nos últimos dias, que todos que chegaram em 2013 deveriam voltar a Cuba até novembro. O Governo comunista diz que eles devem ser substituídos, mas ainda não há cronograma claro para essa reposição, em meio à petição de Havana para renegociar o valor pago pelo convênio fechado com Brasília. [...] No Brasil, os médicos recebem 2.700 reais dos 10.000 reais pagos pelo Governo federal - o restante vai para o Governo cubano. Ainda com os cortes, a maioria quer permanecer do país pelo contraste em relação à remuneração em Cuba (cerca de 50 dólares) e pelas vantagens na comparação com o trabalho em outros países. Além da verba, ganham das prefeituras moradia e aqui consideram ter mais liberdades. Na Venezuela, por exemplo, precisam voltar para a casa até as 18h e são impedidos até de dirigir.
BEDINELLI, Talita; MARREIRO, Flávia. A frustração de médicos cubanos por deixar o Brasil: “Muitos vão desertar”. El País. São Paulo 19 jul. 2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/19/politica/1468888708_417274.html Acesso em 10 dez. 2016.
As convicções do médico Che Guevara eram muito fortes, mas não, necessariamente, sábias, a julgar pela situação atual de seus então futuros colegas. Nós precisamos ter convicções, porque se não, viveremos como folhas impelidas pelo vento, para lá e para cá, mas devemos, antes de tudo, submeter nossas convicções ao teste do conhecimento e submissão à real vontade de Deus.
Por sua misericórdia, Deus impediu Paulo de continuar em sua convicção equivocada, e deu a ele outra convicção, que se submetia aos propósitos do Senhor.
Conclusão
Deus nos livre de passarmos por tribulações. Se tivermos que passar por elas, a tendência é que nossa reação seja conforme nossos instintos, ou conforme a piedade, ou ainda de acordo com as nossas firmes convicções. Mas podemos nos preparar de antemão. De certa forma, podemos dizer que o nosso coração, centro de nossas decisões, é como um copo espiritual, que enchemos constantemente de coisas boas e ruins. Caso ele seja abalado, irá transbordar o seu conteúdo, e afetar tudo o que está à sua volta. Seja com coisas boas, seja com coisas ruins. Nada melhor, portanto, do que enchermos este copo de coisas boas, como o conhecimento e a meditação bíblica, a oração constante e perseverante, a compaixão, o amor que vem de Deus. Se tiver que transbordar, que seja para o bem de todos em redor.
(*) Imagem do cabeçalho disponível em http://joaopaulo-mendes.blogspot.com/2008/05/o-meu-clice-transborda.html Acesso em 12 jan. 2019.