Este parágrafo nos apresenta o cenário de um tribunal, no momento em que Estêvão começa a apresentar a sua defesa contra as acusações de:
a) Proferir blasfêmias contra Moisés e contra Deus;
b) Não cessar de falar contra o lugar santo e contra a lei;
c) Afirmar que Jesus, o Nazareno, destruiria o lugar santo e mudaria os costumes que Moisés lhes dera.
(Atos 6.11.13,14)
Os seus acusadores, os helenistas, a maioria judeus que moravam fora da Judeia, precisavam ter boas condições financeiras para se manterem ligados ao lugar santo. Alugavam casas, pagavam hospedagem, faziam viagens onerosas, tudo para manter sua religião. Os ensinamentos de Estêvão, ao que parece, ameaçavam colocar tudo isto a perder, caso o povo passasse a aceitar que novos tempos chegaram, em que esse sistema de adoração perderia o seu valor.
Estêvão não estava falando nenhuma blasfêmia, mas ensinando o que o Senhor Jesus anunciou à mulher samaritana, em João 4.20,21,23:
Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores.
O próprio Paulo, que na ocasião era um dos helenistas adversários, se transformou, mais tarde, no grande divulgador dessa nova verdade, fundando igrejas independentes de Jerusalém em territórios habitados por judeus da dispersão.
Ao rebater a acusação de blasfemar contra o lugar santo, Estêvão procura abrir a mente dos ouvintes, ensinando que Deus preparou o povo da promessa em vários lugares e, em cada lugar, o povo passou por, pelo menos, um teste.
Primeiro lugar: Harã, o teste do amor (1-4)
O primeiro lugar que Deus usou, como preparação para o seu povo, foi Harã. Podemos dizer que, em Harã, Deus aplicou ao povo o teste do amor.
Então, lhe perguntou o sumo sacerdote: Porventura, é isto assim? Estêvão respondeu: Varões irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória apareceu a Abraão, nosso pai, quando estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e lhe disse: Sai da tua terra e da tua parentela e vem para a terra que eu te mostrarei. Então, saiu da terra dos caldeus e foi habitar em Harã. E dali, com a morte de seu pai, Deus o trouxe para esta terra em que vós agora habitais.
Harã é uma cidade no noroeste da Mesopotâmia, bem na extremidade da fronteira dessa próspera e aprazível região onde Abraão nasceu e foi criado, no oriente médio. Essa cidade, bem como toda a região da qual fazia parte, teve influência quase que constante na vida do povo de Israel, e isto pode ser notado em vários pontos cruciais de sua história:
a) Abraão saiu de Ur, extremo sul da mesopotâmia, e se deteve na fronteira noroeste, na cidade que passou a ser chamada de Harã, metade do caminho para Canaã. Foi só depois da morte de seu pai que ele prosseguiu viagem.
b) Quando traziam as primícias da colheita em oferta ao Senhor, os israelitas faziam uma espécie de juramento solene, e num determinado trecho diziam: Arameu prestes a perecer foi meu pai [...] (Deuteronômio 26.5,10);
c) Abraão manda seu servo buscar esposa para Isaque em Harã (Gênesis 24.2-4);
d) Jacó busca refúgio em Harã contra a ira de seu irmão Esaú (Gênesis 27.43; 28.10; 29.4); Ele foi para ficar alguns dias na fazenda de Labão, na mesma cidade em que habitara seu avô Abraão, e acabou constituindo família, e lá ficou por 20 anos. Depois da evidente e crescente inimizade de seu sogro para com ele foi que Jacó, definitivamente, partiu de volta para a terra prometida.
e) Balaque manda buscar o profeta Balaão, em Harã, para amaldiçoar o povo de Deus (Números 23.7);
f) O povo Assírio, que ameaçava Jerusalém no tempo de Ezequias, havia dominado a região da Mesopotâmia e falava a língua chamada aramaica, ou seja, a língua de Harã (Isaías 36.11);
g) O império babilônico, que tomou da Assíria o poder sobre a Mesopotâmia, também usava a língua aramaica. Para lá o povo de Abraão foi obrigado a voltar, agora como a nação de Israel, conquistada, onde ficou 70 anos e acostumou-se a falar o idioma aramaico (ou, sírio), situação que perdurou até o tempo de Jesus. Trechos importantes da Bíblia foram escritos em aramaico, durante o exílio (Daniel 2.4).
Conforme foram aconselhados em Jeremias 29.5, em Babilônia edificaram casas e habitaram nelas; plantaram pomares e comeram o seu fruto, tanto que, no tempo de Neemias, quando o povo já tinha obtido autorização para voltar à terra prometida, muitos não quiseram. Em Neemias 1.3 ele constatou com tristeza que “os restantes, que não foram levados para o exílio”, se achavam “em grande miséria e desprezo”, e os muros de Jerusalém estavam “derribados, e as suas portas, queimadas”.
Parece que Harã era um lugar muito aprazível, onde as pessoas tinham vontade de ficar. Tão aprazível que partir para Canaã, deixando de lado os amáveis campos e montanhas onde estavam bem instalados, era um teste de amor. O mesmo teste pelo qual nós, também hoje, precisamos passar, segundo 1João 2.15,16:
Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo.
Segundo lugar: Canaã, o teste do caráter (4-9)
O segundo lugar que Deus usou, como preparação para o seu povo, foi Canaã. Podemos dizer que em Canaã Deus aplicou ao povo o teste do caráter.
E dali, com a morte de seu pai, Deus o trouxe para esta terra em que vós agora habitais. Nela, não lhe deu herança, nem sequer o espaço de um pé; mas prometeu dar-lhe a posse dela e, depois dele, à sua descendência, não tendo ele filho. E falou Deus que a sua descendência seria peregrina em terra estrangeira, onde seriam escravizados e maltratados por quatrocentos anos; eu, disse Deus, julgarei a nação da qual forem escravos; e, depois disto, sairão daí e me servirão neste lugar. Então, lhe deu a aliança da circuncisão; assim, nasceu Isaque, e Abraão o circuncidou ao oitavo dia; de Isaque procedeu Jacó, e deste, os doze patriarcas. Os patriarcas, invejosos de José, venderam-no para o Egito; mas Deus estava com ele.
A promessa de Deus a Abraão, de lhe dar a terra de Canaã, não se cumpriu durante a sua vida. Na verdade, ele foi alertado para o fato de que sua descendência ainda passaria por um longo período de escravidão no Egito, antes que a promessa a respeito da terra fosse concretizada. Deus não lhes deu imediatamente a posse da terra prometida, porque tinha outras prioridades. Era necessário testar o caráter.
Abraão foi bem, nos testes mais importantes, mas também houve algumas manchas que ficaram registradas em sua biografia, como seu hábito de mentir a respeito de sua esposa, dizendo que ela era sua irmã, para não correr o risco de ser morto por quem a cobiçasse, e sua precipitação em seguir o plano equivocado de Sara para ter um filho através de sua escrava Agar.
Ló, seu sobrinho órfão, não foi muito prudente em sua relação, perigosamente estreita, com as cidades pecaminosas de Sodoma e Gomorra e, como consequência, acabou perdendo tudo o que tinha, inclusive sua esposa, ao escapar da catástrofe que Deus enviou como juízo sobre aquelas cidades.
Isaque, cuja vida aparentemente não teve tantas emoções como a de seu pai Abraão e de seu filho Jacó, seguiu a tradição de mentir a respeito de sua esposa, como meio de proteção, quando em terra estranha. Seus filhos se desentenderam, e é bem provável que a educação que ele e sua esposa Rebeca lhes deram contribuiu para que isto acontecesse. O que se pode dizer de favorável a respeito do caráter de Isaque, porém, é o fato de ele ser um homem de oração (Gênesis 24.63; 25.21).
Os patriarcas, filhos de Jacó, não foram muito bem nos testes de caráter pelos quais passaram, chegando a vender seu irmão mais novo como escravo no Egito, para onde, mais tarde, também foram obrigados a ir, para não morrerem de fome.
Existe um corinho muito conhecido nas igrejas evangélicas que diz: "Caminhando eu vou para Canaã; Glória a Deus! caminhando eu vou para Canaã; Se você não vai, não impeça eu ir; [...] Glória a Deus! caminhando eu vou para Canaã". A letra, a melodia e o ritmo foram criados para dar uma sensação de vitória, de regozijo, pelo fato de estarmos caminhando rumo a Canaã, a “terra que mana leite e mel”, um lugar de descanso, onde almejamos um dia estar. Eu entendo, porém, que esse lugar é o céu, e não Canaã, o qual, na verdade, é um lugar onde os crentes estão em constante luta espiritual, tanto para estabelecer o reinado de Cristo, quanto para se defender dos constantes ataques do inimigo. É o nosso teste de caráter.
Terceiro lugar: Egito, o teste de resistência (10-19)
O terceiro lugar que Deus usou como preparação para o seu povo, foi o Egito. Podemos dizer que no Egito Deus aplicou o teste de resistência.
[...] e livrou-o de todas as suas aflições, concedendo-lhe também graça e sabedoria perante Faraó, rei do Egito, que o constituiu governador daquela nação e de toda a casa real. Sobreveio, porém, fome em todo o Egito; e, em Canaã, houve grande tribulação, e nossos pais não achavam mantimentos. Mas, tendo ouvido Jacó que no Egito havia trigo, enviou, pela primeira vez, os nossos pais. Na segunda vez, José se fez reconhecer por seus irmãos, e se tornou conhecida de Faraó a família de José. Então, José mandou chamar a Jacó, seu pai, e toda a sua parentela, isto é, setenta e cinco pessoas. Jacó desceu ao Egito, e ali morreu ele e também nossos pais; e foram transportados para Siquém e postos no sepulcro que Abraão ali comprara a dinheiro aos filhos de Hamor. Como, porém, se aproximasse o tempo da promessa que Deus jurou a Abraão, o povo cresceu e se multiplicou no Egito, até que se levantou ali outro rei, que não conhecia a José. Este outro rei tratou com astúcia a nossa raça e torturou os nossos pais, a ponto de forçá-los a enjeitar seus filhos, para que não sobrevivessem.
José serviu como escravo o tempo suficiente para conquistar a confiança de seu senhor, depois foi preso por causa de uma calúnia, esquecido na prisão mais de dois anos, até que sua sorte mudou radicalmente, chegando a tornar-se governador do Egito.
Seus irmãos, porém, se viram em apuros por causa da grande fome, e tiveram que se humilhar diante de seu irmão mais novo, que os perdoou e acolheu depois de algumas repreensões.
Jacó e seus filhos morreram, todos, no Egito, e não alcançaram em vida a promessa da terra. Até mesmo seus ossos foram sepultados em terra que foi comprada a dinheiro (Gênesis 23.16; 33.19), e não recebida em herança, conforme a promessa.
Toda aquela geração passou o resto de sua vida ali, e as gerações seguintes viram sua situação se deteriorar a cada ano, até se tornarem meros escravos, gemendo sob a opressão do novo Faraó.
Talvez não estejamos percebendo, mas a escravidão não é uma realidade tão distante de nós, no tempo e no espaço. Uma matéria no site da BBC Brasil, em junho de 2016, relatava que
O trabalho escravo foi banido em quase todos os países, mas ainda existem muitas pessoas vivendo sob essa condição ao redor do mundo. [...] A chamada escravidão moderna atinge mais de 45,8 milhões de pessoas no mundo, segundo a edição deste ano do Índice Global de Escravidão, publicado pela Fundação Walk Free, da Austrália. A maioria (quase 35%) está na Ásia. Na América Latina, são 2,16 milhões de trabalhadores, 161,1 mil deles no Brasil [...] a incidência desse crime é maior nas áreas rurais no país, principalmente em regiões de cerrado e na Amazônia. [...] A Tailândia [...] foi acusada de lotar seus barcos com birmaneses e cambojanos que foram obrigados a trabalhar como escravos. [...] Os números sugerem a existência de 10 mil a 13 mil vítimas de escravidão no Reino Unido, vindas de países como Albânia, Nigéria, Vietnã e Romênia. [...] O relatório destaca que muitas crianças na Europa, Ásia, África, América Latina e Oriente Médio são forçadas por criminosos a pedir esmolas nas ruas. [...] Grande parte da escravidão moderna não é visível para o público - ela acontece em casas, fazendas ou outros tipos de propriedades particulares. [...] No mês passado, um britânico começou a cumprir uma pena de dois anos de prisão por manter sua própria mulher sob servidão doméstica - é o primeiro caso do tipo de se tem conhecimento no país. Ela foi torturada, forçada a trabalhar e não podia sair de casa, segundo os promotores.
5 exemplos da escravidão moderna, que atinge mais de 160 mil brasileiros. Site da BBC Brasil, 03/06/2016. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36429539 Acesso em 03 jun. 2018.
Às vezes, mesmo que não estejamos sofrendo esse tipo de violência, somos desafiados a exercitar nossa fé e paciência como escravos, neste mundo de injustiças, onde a maior parte do fruto do nosso trabalho é subtraída sem que tenhamos chance de nos defender.
Na escravidão do Egito, os Israelitas foram testados quanto à sua resistência, ilustrando inclusive a escravidão espiritual referida por Jesus em João 8.31-37:
Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres? Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.
Conclusão
Estêvão se defendeu, apresentando a sua tese de que os planos de Deus não incluem, necessariamente, a terra prometida, sendo ela, junto com outras terras, apenas parte de um plano maior que é separar deste mundo um povo santo.
Nossas vidas se assemelham muito com a história de Israel, pois Deus também não nos dá, de imediato, o cumprimento de todas as promessas que nos tem feito. Em vez disso, ele quer nos preparar para a futura posse da vida eterna.
Vamos, pois, nos apropriar da exortação de Paulo em 1Timóteo 6.12 : “Combate o bom combate da fé. Toma posse da vida eterna, para a qual também foste chamado e de que fizeste a boa confissão perante muitas testemunhas”.
Sabemos que o chamado e a eleição são obras de Deus. Ele chama e salva a quem quer, ele se compadece e endurece a quem quer. A nossa responsabilidade é procurar confirmar, “com diligência cada vez maior”, a nossa “vocação e eleição; porquanto, procedendo assim”, não tropeçaremos em tempo algum, e dessa maneira nos será “amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2Pedro 1.10,11).
Que possamos nos esforçar, e que Deus nos ajude a passar com louvor nos testes do Amor, do Caráter e da Resistência.
Foto do cabeçalho - “Pastos Verdejantes” disponível em: https://br.pinterest.com/skduley224/the-lord-is-my-shepherd/ Acesso em 03 jun.2018.
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