terça-feira, 13 de julho de 2021

Virtudes como legado (Atos 16.35-40)

 

Se você soubesse que ia morrer repentinamente, o que deixaria de herança para as pessoas que ama? Muitos pais de família se preocupam em fazer um seguro de vida, em deixar um sólido patrimônio para seus dependentes. Se ele tiver muitos bens, convém que, antes de partir, deixe um legado, que é a declaração de sua última vontade no testamento. Alguns, porém, entendem que o maior legado que um pai pode deixar para os filhos é o seu exemplo de caráter ilibado.

Embora não estivesse para morrer, mas para deixar a cidade de Filipos, para prosseguir sua viagem missionária, Paulo se preocupou em deixar para eles um legado. Tendo cumprido bem sua missão em Filipos, já estava para partir. Antes, porém, precisava certificar-se de que deixara bem entendida a mensagem do evangelho, especialmente no que diz respeito ao caráter que o cristão deve manifestar perante a sociedade. Ele passou por várias tribulações em Filipos, mas sabia que a tribulação é uma grande oportunidade de dar testemunho do que Cristo opera em nós.

Por isso, em Filipos, Paulo teve a oportunidade de demonstrar algumas virtudes que testemunhavam a respeito do que Cristo opera naquele que crê no evangelho e se torna um servo do Senhor. As virtudes que Paulo demonstrou foram um verdadeiro legado para os filipenses, e também são exemplos para nós, nos dias atuais.

Dignidade (35-37)

Quando amanheceu, os pretores enviaram oficiais de justiça, com a seguinte ordem: Põe aqueles homens em liberdade. Então, o carcereiro comunicou a Paulo estas palavras: Os pretores ordenaram que fôsseis postos em liberdade. Agora, pois, saí e ide em paz. Paulo, porém, lhes replicou: Sem ter havido processo formal contra nós, nos açoitaram publicamente e nos recolheram ao cárcere, sendo nós cidadãos romanos; querem agora, às ocultas, lançar-nos fora? Não será assim; pelo contrário, venham eles e, pessoalmente, nos ponham em liberdade.

Paulo podia simplesmente ir embora, pois já recebera autorização. O carcereiro, que acabara de conhecer Paulo, talvez tivesse pensado no seu íntimo: “Esse apóstolo Paulo é mesmo um sujeito enjoado (encardido)! Ô homenzinho difícil!”. Fosse embora! Fosse em paz! Qualquer um, na situação dele, teria saído correndo.

Mas ele estava, na verdade, sendo guiado pelo Espírito Santo, e viu na situação uma oportunidade de fazer a diferença, de mostrar dignidade. Quem sabe se lembrou das palavras de Jesus:

Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus. (Mateus 5.13-16).

Num estudo sobre o tema Sal da Terra, o pastor Neto Curvina[1] faz o seguinte comentário:

[...] O sal altera (modifica) e melhora o gosto das coisas. O que é uma comida insossa? É aquela sem gosto. Experimente um feijão sem sal. Por mais bonito que ele seja. Que gosto terá? O de feijão. Mas é bom? Não, não é bom. É como o mundo. Ele é o que é, parece bom, até pode cheirar bem. Mas, colocado na boca, imediatamente denuncia que há algo errado. O resultado final é desagradável. Como sal a igreja faz da terra um lugar melhor. Eu tenho que fazer do mundo que me cerca um lugar melhor. [...] O sal, ao contrário do açúcar, não tem atrativo algum em si mesmo. Ele só funciona quando utilizado em função dos outros. Assim é o cristão. Jesus nunca diz que devemos ser doces. Doce atrai moscas, formigas, baratas… E o sal, o que atrai? O que é doce pode ser ingerido cru, sem problema, mas sal… Esse é o problema. Não queremos ser o sal da terra. Queremos ser o doce. Ser procurados, bem recebidos, elogiados.

Precisamos entender que a nossa vida com Cristo só faz sentido se pudermos cumprir pelo menos dois mandamentos: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. E isso é feito quando falamos a verdade de Deus ao próximo. Quando não nos conformamos com esse mundo. Quando não nos rendemos aos ventos de doutrina.

Além de ser o sal da terra, o cristão precisa ser a luz do mundo, pois o mundo anda em trevas, em corrupção. Numa de suas entrevistas, a Ministra Carmen Lúcia[2], então presidente do Supremo Tribunal Federal, disse o seguinte:

“Ética é uma prática diária. É mais ou menos como você ter seus hábitos de higiene. É a higiene moral de uma nação. Nós somos um povo e, como povo, nós temos que nos conduzir segundo a ética [...]. Corrupção passiva e ativa devem ser combatidas, “inclusive os deslizes que são considerados pequenos”, como “furar fila, atravessar onde não pode, atravessar um jardim no meio e matar aquela grama”. “Toda forma de corrupção é maléfica, porque no mínimo ela é um mau exemplo para o filho, ela é um mau exemplo para o cidadão que vê que, em vez de ele contornar a praça e deixar o jardim bonito, ele está matando aquele canteiro”, concluiu.

Se todos os cristãos no Brasil andassem de modo digno do evangelho, acredito que o país seria uma nação feliz. Na carta que Paulo escreveu, depois, aos próprios filipenses (1.27-30), ele aborda o assunto da dignidade do crente:

Vivei, acima de tudo, por modo digno do evangelho de Cristo, para que, ou indo ver-vos ou estando ausente, ouça, no tocante a vós outros, que estais firmes em um só espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé evangélica;

Mas ele sabia que viver de modo digno não é fácil, por isso ele deu o exemplo, e na continuação deste trecho da carta aos filipenses ele ainda diz:

e que em nada estais intimidados pelos adversários. Pois o que é para eles prova evidente de perdição é, para vós outros, de salvação, e isto da parte de Deus. Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele, pois tendes o mesmo combate que vistes em mim e, ainda agora, ouvis que é o meu.

Quando exigiu que os pretores fossem pedir desculpas e libertá-lo pessoalmente, Paulo demonstrou a todos que era um homem digno, preso injustamente, e esta lembrança de sua dignidade faria parte do seu legado deixado aos irmãos filipenses.

Moderação (38,39)

Os oficiais de justiça comunicaram isso aos pretores; e estes ficaram possuídos de temor, quando souberam que se tratava de cidadãos romanos. Então, foram ter com eles e lhes pediram desculpas; e, relaxando-lhes a prisão, rogaram que se retirassem da cidade.

Eis aí uma oportunidade de vingança! Paulo podia não ter deixado quieto, podia denunciar os pretores aos seus superiores, abrir um processo contra eles. Mas, assim como Paulo sabia que devia ser sal da terra, tinha a consciência de que o sal, para fazer bem, precisa ser moderado. Ele precisa dar sabor, temperar, mas não pode salgar em excesso. Foi suficiente os pretores terem ido lá e se humilhado, pedindo com rogos que Paulo e Silas se retirassem da cidade. O objetivo da disciplina já havia sido atingido. Agora era hora de mostrar misericórdia, perdão, moderação. Ele mesmo escreveu a Timóteo, mais tarde, alertando-o para o fato de que “Deus não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação” (2ª Timóteo 1.7). E aos próprios filipenses ele escreve também: “Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor (Filipenses 4.5)”.

O economista Samy Dana[3], em seu blog, fala de uma pesquisa feita pelo seu colega austríaco Ernst Fehr que abordou o problema do desejo de vingança. Diz assim o artigo:

[...] O estudo de Fehr mostrou que a maioria das pessoas que tinha a oportunidade de se vingar do seu parceiro egoísta tirava proveito dela. E enquanto tomavam estas decisões, os participantes estavam em um aparelho de tomografia, que revelou que na hora de decidir pela vingança, quem era acionado era o striatum, a parte do cérebro associada com recompensas. Ou seja: ao punir os outros, temos uma forte sensação de prazer [...]. Ainda que, racionalmente, faça mais sentido simplesmente ignorar o outro e bola para frente [...], muitas vezes, estamos dispostos a até gastar dinheiro, energia e tempo para criar uma vingança perfeita [...].

Para quem ama a Cristo, porém, há maior prazer em não se vingar, conforme Paulo, contando sua própria experiência em 2ª Coríntios 12.10: “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte”.

Ao ter aceitado como suficiente o pedido pessoal de desculpas por parte dos pretores, Paulo demonstrou moderação, deixando a lembrança desta virtude como legado para os recém-convertidos filipenses.

Benevolência (40)

“Tendo-se retirado do cárcere, dirigiram-se para a casa de Lídia e, vendo os irmãos, os confortaram. Então, partiram”.

Parece contraditório o que diz o texto. Paulo e Silas foram açoitados e presos sem terem nenhuma culpa, suas costas ainda estavam feridas, certamente muito doloridas, e tinham sofrido tudo isso somente por fazerem o que Deus mandou: pregar o evangelho. Tinham todos os motivos para estarem abatidos, desanimados, temerosos das demais ameaças que os rondavam nesse ministério. Eles é que precisavam receber palavras de incentivo, de ânimo, de conforto. Mas em vez disso, o que lemos no versículo 40 é que eles se dirigiram para a casa de Lídia e confortaram os irmãos. O Espírito Santo colocou em seus corações amor suficiente para esquecerem suas próprias dores, e pensarem no bem-estar dos recém-convertidos, novatos na fé, que deviam estar alarmados e grandemente preocupados com o que acontecera aos apóstolos, com a perseguição que sofreram.

Uma pesquisa da ONU, divulgada em 2010, revela que o brasileiro, de um modo geral, tem a tendência de ser benevolente. Uma notícia no site do Bom dia Brasil[4], em 2010, diz o seguinte:

A ONU perguntou para os brasileiros: "O que precisa mudar no país para sua vida melhorar?". Meio milhão respondeu que são os valores. A partir desse retorno da população - que surpreendeu os pesquisadores - o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em parceria com o Ibope e com o programa de voluntários das Nações Unidas, foi a campo descobrir quais são esses valores [...]. O brasileiro deu maior nota e provou que preza mais o valor da benevolência e da solidariedade [...]. Pode-se dizer que os brasileiros se percebem valorizando em primeiro lugar o bem-estar das pessoas que são próximas, com quem convivem, e mantêm algum laço afetivo, acreditando que é importante ajudá-las.

Que bom que o brasileiro pensa assim! Porém a prática pode ser diferente da percepção, pois existe grande distância entre pensar de um modo e agir desse mesmo modo.

Um artigo no Infomoney[5] revela que:

O Brasil e a Venezuela disputam o título de país mais egoísta da América do Sul. Ambas as nações estão na 91ª posição do ranking World Giving Index de 2013, divulgado pelo instituto CAF (Charities Aid Foundation), que mede a generosidade dos países. De acordo com o levantamento, durante o ano de 2013, somente 42% dos brasileiros ajudaram um desconhecido, 23% doaram dinheiro para caridade e 13% fizeram algum tipo de trabalho voluntário. Dentre as 155 mil pessoas de 135 países que foram entrevistadas, os norte-americanos foram os mais generosos, seguidos pelos canadenses. Já a Grécia decepcionou por ser o país mais egoísta.

É bem provável que estas pesquisas não representem fielmente a realidade de cada um de nós, mas de uma coisa podemos ter certeza: para praticar, de fato, a benevolência, esquecer suas próprias dores e agir para o bem-estar do próximo, é preciso a capacitação do Espírito Santo, naqueles em quem manifesta o seu fruto, que é “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gálatas 5.22).

Ao esquecer-se de suas próprias dores e preocupar-se em confortar os outros, Paulo demonstrou a virtude da benevolência, e esta lembrança certamente fez parte do seu legado.

Conclusão

Assim aprendemos que Paulo, antes de partir, deixou um legado para os filipenses, do qual fazem parte as virtudes:

a)   A dignidade, porque fez questão de obrigar os pretores a retirá-los pessoalmente da prisão, mostrando que eram dignos de respeito, que eram cidadãos romanos, cientes e cumpridores dos seus deveres, e não podiam ter sido tratados daquela maneira pelas autoridades.

b)  A moderação, porque, apesar de terem submetido os pretores à humilhação de terem que ir lá e lhes pedir desculpas, não levaram o caso adiante por vingança, mas saíram em paz e deixaram de lado essa questão, pois o propósito de terem exigido respeito das autoridades já havia se cumprido.

c)   A benevolência, porque em vez de ficarem se condoendo e se lamentando por causa das coisas sofridas, esqueceram sua própria dor e pensaram no bem-estar dos novos discípulos, e foram confortá-los para que não temessem as ameaças de quem quer que seja, para se dedicarem com coragem à sua nova vida com Cristo.

Que legado você pretende deixar para as pessoas com quem convive? Como você quer ser lembrado, quando tiver que partir? Podemos seguir o exemplo de Paulo, assim como ele seguia o exemplo de Cristo. Que possamos demonstrar, em nossas relações pessoais, as virtudes da Dignidade, da Moderação e da Benevolência.

 

Artigo elaborado por: Arildo Louzano da Silveira. São José do Rio Preto, julho de 2021.

(*) Foto do cabeçalho disponível em: https://www.ibccoaching.com.br/portal/motivacao-pessoal/qual-legado-voce-pretende-deixar-para-seus-filhos/ Acesso em 13 jul. 2021.

(**) Citações da Bíblia extraídas de: A Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada 2ªed. 1988, 1993. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012. 1280p.

[1] CURVINA NETO, Milton. O Sal da Terra. Site Gospel Mais/Estudos Bíblicos, 11 nov. 2015. Disponível em: https://estudos.gospelmais.com.br/o-sal-da-terra.html Acesso em 23 mar. 2018.

[2] “Corrupção é erva daninha”, diz Cármen Lúcia. Jovem Pan Online/Programas/Jornal da Manhã, 23/03/2018. Disponível em: http://jovempan.uol.com.br/programas/jornal-da-manha/corrupcao-e-erva-daninha-diz-carmen-lucia.html Acesso em 23 mar. 2018.

[3] DANA, Samy; SANDLER, Carolina Ruhman.  Economistas explicam o desejo de vingança. G1/Economia, 06/02/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/economia/blog/samy-dana/post/economistas-explicam-o-desejo-de-vinganca.html Acesso em 25 mar. 2018.

[4] Brasileiros se preocupam com bem-estar dos próximos. Bom dia Brasil online, 25/05/2010. Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2010/05/brasileiros-se-preocupam-com-bem-estar-dos-proximos.html Acesso em 25 mar. 2018.

[5] Brasil é o país mais egoísta da América do Sul. Infomoney, 05/12/2013. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/infomoney/2013/12/05/brasil-e-o-pais-mais-egoista-da-america-do-sul.htm Acesso em 13 jul. 2021.


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