Quando um jovem vai escolher qual faculdade cursar, aconselha-se fazer, antes, um teste vocacional, para diminuir o risco de escolher um curso com o qual não se dê muito bem. Assim como os indivíduos, as instituições também têm suas vocações, que têm como base o ideal dos fundadores e dos seus próprios membros.
Jesus Cristo é o fundador da igreja, e seus membros que, não à toa, são chamados de cristãos[1], procuram imitar o seu Mestre. Se fôssemos aplicar, então, um teste vocacional à igreja hoje, qual seria o resultado?
Este parágrafo de Atos 15.1-5 mostra o andar de uma igreja jovem, que caminhava para o amadurecimento. Suas vocações, porém, são as mesmas que identificam as igrejas de um modo geral, ainda hoje.
Uma igreja vigilante (1,2)
Alguns indivíduos que desceram da Judeia ensinavam aos irmãos: Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos. Tendo havido, da parte de Paulo e Barnabé, contenda e não pequena discussão com eles, resolveram que esses dois e alguns outros dentre eles subissem a Jerusalém, aos apóstolos e presbíteros, com respeito a esta questão.
A primeira vocação vista neste parágrafo é a que identifica a igreja como vigilante, atenta ao que está sendo ensinado, se está de acordo com a sã doutrina, repelindo aproveitadores que desejam explorar a boa fé, ou que distorcem a Palavra por motivo de ignorância.
Foi por causa desta vocação de vigilância que Paulo e Barnabé contestaram os indivíduos que desceram da Judeia, os quais, com ensinos supostamente bíblicos, mas fora do contexto da Nova Aliança estabelecida em Cristo, acabaram gerando grande discussão que precisou ser tratada com disciplina, até ao ponto de terem que subir a Jerusalém, aos apóstolos e presbíteros, para tratar da questão.
É comum, ainda hoje, nas igrejas, a atuação de pregadores que, por má fé ou por ignorância, levantam-se para trazer doutrinas e aplicações equivocadas, ignorando total ou parcialmente o contexto dos versículos bíblicos, os quais citam com tanta veemência.
Quando falamos de ignorância, na visão do escritor português Arménio Miranda[2], ela pode ser classificada em três tipos:
Ignorância positiva
[...] é a ignorância dos sábios. A Ignorância daqueles que sabem que pouco sabem daquilo que podem saber, porque sabem que entre o mundo absoluto e inatingível de Deus e o mundo efémero dos homens ainda existe outro mundo ao seu alcance – o mundo ignorado, o mundo ignoto. [...] têm a humildade de ostentar a sua Ignorância e de se questionar, questionar os outros e gostar de ser questionado [...]
Ignorância negativa
[...] A Ignorância daqueles que têm uma necessidade paranoica de ter sempre razão. [...] A nossa Ignorância é Negativa quando não assumimos que somos ignorantes e a ostentamos com prepotência, recusando-nos a questionarmo-nos, a questionar os outros e irritando-nos quando somos questionados. Quando temos poder, impomo-la. [...] A sua especialidade está em criar problemas para as soluções [...].
Santa Ignorância
A ignorância dos mais conformados e felizes. Desconhecem os perigos mais iminentes que estão nas mãos dos seus semelhantes. [...] É a Ignorância dos felizes. [...] Como é bom desconhecer que um dia o nosso planeta pode ficar estéril com uma catástrofe provocada pelo Homem. A Santa Ignorância é aquela que faz as pessoas mais felizes: não sabem, não procuram saber e admiram-se ou não se importam com quem sabe.
Paulo sempre incentivou a igreja a ser vigilante e lutar contra a ignorância, alertando sobre estas coisas em suas cartas, como nos trechos de Colossenses 2.4-18 reproduzidos abaixo:
[...] ninguém vos engane com raciocínios falazes [...], conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo; [...] Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo [...]. Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, [...] Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando humildade e culto dos anjos, baseando-se em visões, enfatuado, sem motivo algum, na sua mente carnal [...].
Se a igreja se mantiver vigilante, examinando as Escrituras a exemplo dos bereanos (Atos 17.11), se protegerá da ignorância e se edificará de forma sadia para a glória de Deus.
Uma igreja alegre (3)
Enviados, pois, e até certo ponto acompanhados pela igreja, atravessaram as províncias da Fenícia e Samaria e, narrando a conversão dos gentios, causaram grande alegria a todos os irmãos.
O melhor caminho da Síria para a Judeia passava pela Fenícia e Samaria, mas o trecho que passa por Samaria era evitado pela maioria, já que os judeus não se davam com os samaritanos, conforme é dito em João 4.9. Para aqueles discípulos, porém, as fronteiras entre a Judeia, Samaria e Gentios estavam revogadas em Cristo. Chegara o dia, mencionado pelo Senhor, em que os verdadeiros adoradores adorariam a Deus em espírito e em verdade (João 4.23).
E eles verdadeiramente adoraram a Deus, tanto na província da Fenícia como em Samaria, demonstrando a vocação de uma igreja alegre, onde não havia mais lugar para o preconceito. Todos podiam se alegrar juntos pela conversão dos gentios, unidos agora com judeus e samaritanos.
A alegria às vezes vem facilmente, mas outras vezes precisa ser, digamos, meio “forçada”. Foi o que aconteceu com os exilados que voltaram para sua terra no tempo de Esdras e Neemias, quando se reuniram para ouvir a Palavra de Deus:
Neemias, que era o governador, e Esdras, sacerdote e escriba, e os levitas que ensinavam todo o povo lhe disseram: Este dia é consagrado ao SENHOR, vosso Deus, pelo que não pranteeis, nem choreis. Porque todo o povo chorava, ouvindo as palavras da Lei. Disse-lhes mais: ide, comei carnes gordas, tomai bebidas doces e enviai porções aos que não têm nada preparado para si; porque este dia é consagrado ao nosso Senhor; portanto, não vos entristeçais, porque a alegria do SENHOR é a vossa força. Os levitas fizeram calar todo o povo, dizendo: Calai-vos, porque este dia é santo; e não estejais contristados. Então, todo o povo se foi a comer, a beber, a enviar porções e a regozijar-se grandemente, porque tinham entendido as palavras que lhes foram explicadas (Neemias 8.9-12).
Este cenário até se parece com nossas celebrações de Natal, não é mesmo? Às vezes é difícil ser alegre quando temos tantas lembranças tristes. Mas na igreja, seja de maneira espontânea, seja com um pouco de esforço, é preciso que nos ajustemos a esta vocação, e nos alegremos na presença daquele que nos concedeu salvação.
Uma igreja conciliadora (4,5)
Tendo eles chegado a Jerusalém, foram bem recebidos pela igreja, pelos apóstolos e pelos presbíteros e relataram tudo o que Deus fizera com eles. Insurgiram-se, entretanto, alguns da seita dos fariseus que haviam crido, dizendo: É necessário circuncidá-los e determinar-lhes que observem a lei de Moisés.
Este evento em Jerusalém é considerado o primeiro concílio da Igreja. Este e outros concílios na história foram promovidos como uma forma de se resolverem dúvidas doutrinárias importantes como, por exemplo, os livros que deveriam compor o cânon da Bíblia, a divindade de Cristo, e a Santíssima Trindade.
Mas os concílios, cujos objetivos são estabelecer doutrinas para o bem da união, não são capazes de impedir as divisões. Nestes cerca de dois mil anos, houve pelo menos duas grandes divisões, que foram o Cisma, em 1054, e a reforma protestante em 1517.
Entre os que seguiram o movimento da Reforma foram evidenciadas outras subdivisões, entre Zuínglio e Lutero, calvinistas e arminianos, Batistas e Presbiterianos, Anglicanos e Puritanos, Metodistas, pentecostais e tradicionais, e nos tempos atuais o fracionamento é praticamente a regra.
Já ouvi um jovem de uma igreja pentecostal se referindo aos irmãos das demais igrejas como “samaritanos”. E já ouvi muitos jovens de igrejas chamadas reformadas se dirigindo aos irmãos de igrejas pentecostais como hereges. Um grande debate, hoje, divide os crentes evangélicos em arminianos e calvinistas. Há também irmãos que nunca ouviram falar nada disto.
As igrejas precisam constantemente ser lembradas de que podemos debater nossas ideias sem sermos preconceituosos, considerando que os irmãos que defendem o outro ponto de vista merecem nosso respeito, principalmente ao reconhecermos que os concílios não conseguem conciliar tudo.
Batistas e Presbiterianos, por exemplo, apesar de serem bem próximos na forma de culto e de doutrina, trazem em suas origens profundas diferenças, como ressalta Vernon C. Lyons[3]:
Um evento de grande importância, mas muitas vezes não lembrado, é o Segundo Concilio de Speier no dia 25 de abril de 1529. [...] Phillip Schaaf, em sua "História da Igreja Cristã," Tomo VII, p. 692 afirma que "A partir deste protesto e apelo os Luteranos foram chamados ‘Protestantes.’[...]." Os Batistas de então não fizeram parte deste protesto e consequentemente não podem levar o nome "Protestante" [...] Além disso, o credo dos Batistas não é a Confissão de Augsburg, os Canons de Dort, ou a Confissão de Westminster, mas a simples Palavra de Deus. Assim é impossível identificar os Batistas como Protestantes.
Estas diferenças entre as várias vertentes de doutrinas cristãs, no entanto, não anulam a possibilidade do amor e da comunhão, numa igreja que é conciliadora.
Conclusão
Apesar de existirem problemas, a igreja atual ainda mantém estas vocações, sendo vigilante, alegre e conciliadora. As divisões que existem, em parte, se devem ao fato de termos uma liberdade em Cristo, a qual não permitimos que seja sequer sondada. Por isto somos vigilantes, não aceitando que sufoquem a nossa alegria da salvação, querendo impor regras humanas como condicionantes para o favor de Deus. Cremos no Senhor Jesus, e por isto somos salvos.
Neste Natal, vamos nos alegrar, porque Jesus nasceu, morreu na cruz e ressuscitou. O Filho de Deus veio ao mundo e, pela sua graça, nos salvou. O Espírito Santo habita em nós, ele garante a nossa conciliação, primeiro com Deus e, consequentemente, com todos os que o amam. E sejamos vigilantes, tanto para evitar falsos ensinos, quanto para nos vermos livres das “ciladas do diabo” (como diz em Efésios 6.11).
Quando se trata da escolha de uma profissão, somos aconselhados a seguirmos a indicação do teste vocacional. Quanto ao chamado de Deus, porém, vamos seguir o conselho de São Pedro: “[...] procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum” (2ª Pedro 1.10).
Artigo elaborado por: Arildo Louzano da Silveira. São José do Rio Preto, dezembro de 2020.
(*) Foto do cabeçalho disponível em: https://www.zedge.net/wallpaper/c57ea0d5-49e9-3c12-847b-66306e60d730 Acesso em. 20 dez. 2020.
(**) Citações da Bíblia extraídas de: A Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada 2ªed. 1988, 1993. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012. 1280p.
[1] Na época em que o termo “cristãos” foi criado, era como contemporâneo termo “minions” que se atribui hoje, pejorativamente, aos seguidores de algum líder a quem se quer criticar.
[2] MIRANDA, Arménio. Ignorância – Apologia da Ignorância Positiva. Portugal: Liríope Editora, 2012 P. 25-29.
[3] LYONS, Vernon C.Tradução por MONTGOMERY, Steve. Batistas não são protestantes. Igreja Batista Independente de Ourinhos, SP, nov. 2000. Disponível em: http://solascriptura-tt.org/EclesiologiaEBatistas/BatistasNaoSaoProtestantes-Lyons.html Acesso em 24 dez. 2017.
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